Linhagem
Minha árvore ginecológica
me transmitiu fidalguias,
gestos marmorizáveis:
meu pai, no dia do seu próprio casamento,
largou minha mãe sozinha e foi pro baile.
Minha mãe tinha um sentido só, mas
que porte, que pernas, que meias de seda mereceu!
Meu avô paterno negociava tomates verdes,
não deu certo. Derrubou mato pra fazer carvão,
até o fim de sua vida, os poros pretos de cinza:
'Não me enterrem na Jaguara. na Jaguara, não.'
Meu avô materno teve um pequeno armazém,
uma pedra no rim,
sentiu cólica e frio em demasia,
no cofre de pau guardava queijo e moedas.
Jamais pensaram em escrever um livro.
Todos extremamente pecadores, arrependidos
até a pública confissão de seus pecados
que um deles pronúnciou como se fosse todos:
"Todo homem erra . Não adianta dizer eu
porque eu. Todo homem erra.
Quem não errou vai errar."
Esta sentença não lapidar, porque eivada
dos soluços próprios da hora em que foi chorada,
permaneceu inédita, até que eu,
cuja mãe e avós morreram cedo,
de parto, sem discursar,
a transmitisse a meus futuros,
enormemente admirada
de uma dor tão alta,
de uma dor tão funda,
de uma dor tão bela,
entre tomates verdes e carvão,
bolor de queijo e cólica.
Adélia Prado
Linhagem
Qual é a sua linhagem?
Lendo esse lindo poema de Adélia Prado, minha poeta preferida, fiquei pensando nas mulheres que fizeram o caminho antes de mim. Impossível não me emocionar ao entender junto com a genialidade desse poema, que tanata dor, tanta beleza, tanta história, chegou até mim e faz parte de mim. Não só por ser fruto de seus ventres, mas também por ser uma continuidade delas no tempo. Sou eu que as represento agora, no presente, em 2011, todas essas mulheres que vieram antes de minha história.
Muitos pais me pedem orientações de como mudar comportamentos de seus filhos sem perceber que seus exemplos, suas próprias vidas, são a melhor forma de ensinamento. Nós somos a continuidade de tudo que nossos pais não puderam dar conta, já que são ou foram apenas seres humanos e por isso mesmo, falhos e incompletos. E nossos filhos vão terminar aquilo aquilo que não pudermos fazer, por maior que sejam nossos esforços em nos cumprirmos.
Sejamos então, o melhor de nós mesmos, sem nos iludirmos que nosssas omissões e lacunas não afetarão as futuras gerações. Elas já afetam, se você quiser ver, como fez lindamente Adélia Prado.
Sejamos corajosos e evoluamos a espécie humana!
Poema Linhagem de Adélia Prado
Do livro Poesia Reunida Ed. Siciliano 3. Ed 1991
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